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O Espelho Sujo

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Olha essa figura esquálida. Estou cada vez mais parecido com ele. É a prova de que Deus não está nem aí para a nossa saúde mental. O único compromisso d’Ele é com o sarcasmo. Pro inferno! Desculpa. Por que eu fui aceitar o convite do Gilson para um café? Ele só queria alguém para conversar sobre o jogo do Flamengo. Para o inferno com o Flamengo. Para o inferno com o Gilson. Mas por que cacete eu aceitei? Eu torço para o Fluminense. Que horas é o jogo do Flu mesmo? Que importa? Tive que vir para cá e do jeito que as coisas vão, eu aqui, preso, por culpa do Gilson, que fique bem claro, não vou chegar em casa a tempo de ver a partida. Seu fraco! É com você mesmo, aí do outro lado desse espelho respingado de água e germes. Por que você não disse “não” para o Gilson? Por que você nunca diz “não”? Fica aí no espelho, com sua cara vermelha e esses olhos úmidos. Por que não disse “não”? Por acaso ele é seu pai? Por que não disse “não” para o seu pai? Aturou quieto aquele hálito de cerveja e ci...

A Vitória de Sísifo

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Pela manhã, o humor de Rute harmonizava com o seu café sem açúcar, há anos o único alimento que ingeria.  Quando Ari se levantava da cama, o relógio interno da mulher marcava o tempo para a vingança. Por cinco anos, ele se deitou na cama de Leila, e isso legitimava as pequenas vinganças diárias. Na manhã de quinta—feira, Rute arremessou o p rato sobre a mesa e sentou-se para ler o jornal, como fazia habitualmente. — Você cortou na vertical de novo, mulher? Você sabe que eu gosto na diagonal. — Então dá para a Susie. Ela come em qualquer posição – disse, apontando na direção da velha poodle branca, que já se confundia com a mobília da casa. — Velha tinhosa! O que custa me fazer o diabo de um misto-quente como qualquer padaria desse país? Rute bebeu mais um gole do café, em uma caneca que escondia covinhas-de-quem-ri-de-um-tropeço, dobrou o jornal como se dobrasse um papel de presente e saiu pela porta. Ari tirou a casca de cima do pão de forma e deu para a cadela. Parecia...

Conto de Natal no Cachambi

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O dia mais triste da minha vida foi quando eu deixei de acreditar no papai Noel. Foi aos nove, em um shopping da zona norte do Rio. Eu sei que, para muitas crianças, é chato descobrir que o bom velhinho é só o seu pai vestindo uma barba falsa, comprada no camelódromo. No meu caso, o mundo desabou. Não conheci meu pai. Conheci os tios Claudio, Damião, Gerson, Gilson, Nonô, Alcides, Arnaldo, Roberto e Rubens (esse último foi promovido de meu professor de judô a tio). Alguns me batiam, outros nem me enxergavam, uns fingiam gostar de mim. O tio Damião até consertou meu autorama com um pedaço de bombril, mas ele falava cuspindo e hoje eu acredito que a sua saliva era o motivo do curto-circuito no carrinho preto. Somando-se a isso o fato de minha mãe não ter irmãos e seus primos morarem em Alagoas, conheci poucos homens na minha infância. Um único era bom. Noel era incrível, foi com ele que aprendi que o título de papai era muito superior ao de tio.  Tão logo entrava dezembro, a casa tro...