Conto de Natal no Cachambi
Não conheci meu pai. Conheci os tios Claudio, Damião, Gerson, Gilson, Nonô, Alcides, Arnaldo, Roberto e Rubens (esse último foi promovido de meu professor de judô a tio). Alguns me batiam, outros nem me enxergavam, uns fingiam gostar de mim. O tio Damião até consertou meu autorama com um pedaço de bombril, mas ele falava cuspindo e hoje eu acredito que a sua saliva era o motivo do curto-circuito no carrinho preto.
Somando-se a isso o fato de minha mãe não ter irmãos e seus primos morarem em Alagoas, conheci poucos homens na minha infância. Um único era bom. Noel era incrível, foi com ele que aprendi que o título de papai era muito superior ao de tio.
Tão logo entrava dezembro, a casa trocava os cinzas acumulados de onze meses pelo colorido da árvore de Natal. Eu passava horas decorando a sequência em que as cores do pisca-pisca se alternavam. Em dezembro, eu não almoçava com Tom e Jerry. Eu almoçava com “verde-vermelho-amarelo—vermelho-verde”. A minha mãe ficava linda nas noites de dezembro; trocava o bege por “verde-vermelho-amarelo—vermelho-verde”.
Escreve, escreve, escreve. Muxoxo. Arranca a folha do caderno e amassa. Lixeira lotada. Minhas primeiras vinte tardes de dezembro se resumiam a isso. Eu não queria só mandar uma cartinha para o papai. A minha cartinha tinha que ser a melhor cartinha, a que valia a bicicleta. Minha mãe sempre dizia “filho meu pode ser o que for, mas tem que escrever como doutor”.
Do dia dezenove para o dia vinte eu praticamente não dormi. Acordei às cinco e passei a manhã como uma dessas mariposas que encontram a luz de uma varanda depois de horas voando no escuro. Saímos de casa uma hora antes de o shopping abrir, para pegarmos um bom lugar na fila, onde eu entregaria a cartinha pessoalmente. Eu devia ter desconfiado que o sujeito não sairia lá da Finlândia para dar uma voltinha no Cachambi Mall.
Era verão no Rio, mas o meu suor não era como os outros suores. Ele me esfriava. Meus lábios pareciam um formigueiro e eu já tinha corrido meia maratona, parado, naquela fila. Dez horas e nada do bom velhinho. Cada mexida no ponteiro apertava o nó na minha garganta.
O reboliço de sentimentos parecia espremer minha bexiga em algum canto do meu corpo, onde ela só poderia continuar existindo se esvaziada. “Eu fico na fila, meu amor. Pode ir ao banheiro”. “Cê jura que fica?”. “Claro, filho. Mamãe fica te olhando daqui”.
O banheiro era logo em frente, em um corredor sob a placa que dizia WC (assim eles chamavam banheiro no Cachambi Mall). Cada passo desse trajeto era interrompido por pequenas pausas, como se buscasse nos olhos da minha mãe o mapa óbvio da reta a seguir.
Eu abri a porta do banheiro e era como se estivesse em um programa do Silvio Santos. Meu cérebro duvidava do que meus olhos viam. Não podia ser real. Ali, de costas, na minha frente, sob a luz do sol que entrava pelo basculante, estava ele, com seu inconfundível vermelho escarlate. Bem ao lado dele, o seu pequeno ajudante. Naquele segundo, eu era a criança mais feliz do mundo inteiro, mais ainda do que as crianças do Cachambi, todas na fila. O meu impulso foi de abraçá-lo por trás, como toda a minha força. Tomei coragem para dar o primeiro passo e fui interrompido pela fina voz do ajudante do papai Noel.
— Porra, Eusébio, vira essa piroca pra lá. Tá respingando no meu rosto.
— Hahaha. Anão manja rola. — disse o velhinho, que já não parecia tão bom.
— Falando em rola, você viu aquela mamãe de vestidinho roxo na fila?
— Vou mandar ela sentar no meu colinho também.
Os dois se refestelavam como porcos na lama.
— Vê se eu to com bafo de Cigarro, André.
— Tá não, chefe.
— Guarda essa jiboia e vamos aturar aquele monte de crianças chatas pra cacete até as dez.
Meu espírito retornou ao corpo no “jiboia”, secando tudo que eu tinha por dentro: do xixi aos sentimentos. Bati a porta e voltei correndo para minha mãe, abracei ela bem forte, enxuguei as lagrimas no seu vestido cor de uva e pedi para voltarmos para casa.
Naquele dia eu entendi que Noel não era papai, era só mais um tio.
Adorei o humor amargo do protagonista, e o desnudamento (literal e metafórico) do papai noel.
ResponderExcluirMuito obrigado, Ana. Que bom que curtiu 🥰
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