O Espelho Sujo
Olha essa figura esquálida. Estou cada vez mais parecido com ele. É a prova de que Deus não está nem aí para a nossa saúde mental. O único compromisso d’Ele é com o sarcasmo. Pro inferno! Desculpa.
Por
que eu fui aceitar o convite do Gilson para um café? Ele só queria alguém para
conversar sobre o jogo do Flamengo. Para o inferno com o Flamengo. Para o
inferno com o Gilson. Mas por que cacete eu aceitei? Eu torço para o Fluminense.
Que horas é o jogo do Flu mesmo? Que importa? Tive que vir para cá e do jeito
que as coisas vão, eu aqui, preso, por culpa do Gilson, que fique bem claro, não
vou chegar em casa a tempo de ver a partida.
Seu
fraco! É com você mesmo, aí do outro lado desse espelho respingado de água e
germes. Por que você não disse “não” para o Gilson? Por que você nunca diz “não”?
Fica aí no espelho, com sua cara vermelha e esses olhos úmidos. Por que não
disse “não”? Por acaso ele é seu pai?
Por
que não disse “não” para o seu pai? Aturou quieto aquele hálito de cerveja e
cigarro, o peso daquela barriga asquerosa, os pelos, a dor. “Engole o choro,
moleque!”. “Nosso segredinho”, ele dizia, como se a mamãe não soubesse de tudo.
Corresponsáveis por essa figura patética. Me consola saber que nenhum de nós
três escapa ao julgamento do espelho.
Agora
eu estou aqui, há quinze minutos neste lugar com cheiro de mijo. Sem luvas, sem
coragem, sem álcool em gel, sem dignidade e com pelos do meu pai em cada
torneira, botão, maçaneta, nessa bancada, no espelho. Preso em um passado que
não morreu junto com aquele ser desprezível.
Esta
pia descascando. Tudo aqui dentro é asqueroso. Eu posso lavar as mãos pela quarta
vez, que nada é capaz de desinfetar o que eu vejo no espelho.
Será
que a dor passa se eu morrer? Bom, agora que eu mandei Deus para o inferno,
provavelmente não. Mas o que pode ser pior que esse calvário diário?
Já,
já começa a partida e vou acabar perdendo a única coisa boa que aquele velho escroto
deixou para mim.
Até
que enfim está vindo alguém mentalmente estável para meter a mão na maçaneta e empurrar
a porta. Ajeita o rosto, inútil.
—
Oi, doutor Paulo. Ainda não foi para casa?
—
Tô indo agora, Zé.
—
Que bom que o senhor tá indo, porque eu tenho que limpar esse banheiro. Tá uma imundície.
E amanhã vai tá sujo igual, doutor. Essa sujeira não acaba mais nunca. Parece
que quanto mais eu limpo, mais sujo fica.
— É sempre assim, Zé. Todo dia é dia de limpar essa sujeira que nunca acaba.
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