A Vitória de Sísifo
Na manhã de quinta—feira,
Rute arremessou o p
rato sobre a mesa e sentou-se para ler o jornal, como fazia
habitualmente.
— Você cortou na vertical
de novo, mulher? Você sabe que eu gosto na diagonal.
— Então dá para a Susie.
Ela come em qualquer posição – disse, apontando na direção da velha poodle branca,
que já se confundia com a mobília da casa.
— Velha tinhosa! O que
custa me fazer o diabo de um misto-quente como qualquer padaria desse país?
Rute bebeu mais um gole
do café, em uma caneca que escondia covinhas-de-quem-ri-de-um-tropeço, dobrou o
jornal como se dobrasse um papel de presente e saiu pela porta. Ari tirou a
casca de cima do pão de forma e deu para a cadela. Parecia um dia como qualquer
outro na vida do casal.
A noite também tinha a
sua rotina. Rute levava chá de camomila para Ari e ele reclamava que preferia o
de hortelã, sempre dando ênfase no til, como uma criança que faz birra. A
mulher ignorava “Boa noite, velho chato”. “Boa noite, querida”. Ari ria, selava
o dia com um beijo na testa e virava-se para o lado. Rute tomava um sal de
frutas, pegava um romance de qualidade duvidosa e lia até dormir.
Rute e Ari se conheceram em
1969. Ela, tiete da jovem guarda; ele, um adepto do iê-iê-iê. Rute tinha a boca
de Nancy Sinatra; Ari, os cabelos de Ronnie Von. Já no primeiro encontro, a
moça olhou para o jovem como se fosse um velho conhecido. Foi correspondida.
Casamento. Novela. Trabalho.
Ceroula. Bobes. Leila. Filho. Filha. Leila.
Leila
Às quintas, enquanto Rute frequentava os grupos de oração, Ari
frequentava as entranhas de Leila. A mulher era viúva, sete anos mais nova e fervia
nos braços de Ari como ele jamais vira. Ari se tornara um adicto do visco
quente da amante. A culpa de outrora se transformou em dúvida e a dúvida em perversão.
O casal já não disfarçava, não por descuido, mas por mera provocação, fetiche, afronta.
Logo caíram na boca do povo.
No mercado, na igreja e onde mais Rute frequentasse, os olhares buscavam-na
e desviavam. Os cochichos encerravam sob a repentina presença da mulher enganada.
Nos encontros da igreja, as pessoas a olhavam como quem vê um pássaro de asa
quebrada.
Certo dia, depois das orações de quinta, ela resolveu confrontar uma amiga,
que lhe disparou, como uma metralhadora, tudo sobre Leila e Ari. As palavras
atravessaram a pele da mulher traída e as alvejaram o espírito. No caminho de
casa, sentia que a calçada era feita de nuvens. Chegou a balbuciar “Será que eu
estou morta?”. Era uma árdua tarefa discernir se aquele corpo, que andava de
forma autômata e divorciado da alma, estivesse propriamente vivo.
Confronto. Desculpas. Promessas.
Por muito tempo, Rute pensou em matar, em morrer, em sumir. Por fim,
resignou-se. Tinham dois filhos, ela não trabalhava e talvez houvesse alguma
forma de aparar essa aresta. Tudo voltou ao normal, mas Rute nunca mais foi a
mesma.
O peso de cada dia se
fazia sentir ao abrir os olhos pela manhã, como se o levantar das pálpebras revelasse
a presença de uma enorme pedra trazida do estômago para a garganta enquanto ela
dormia. Durante o dia, o corpo de Rute apenas existia, enquanto a sua alma se
movimentava, a cada piscadela, como Sísifo carregando uma pedra de volta para o
estômago, onde ela terminava o dia — esse peso não havia antiácido que pudesse
aliviar. O seu corpo degenerescente dormia às vinte e duas horas, mas o seu espírito
ainda tinha um longo e íngreme aclive a percorrer.
O efeito do tempo sobre o
corpo de Rute corria com velocidade dobrada, colhendo os frutos de uma alma
insone.
Na noite de quinta, Rute
entrou no quarto com a cabeça erguida. Um olhar mais atento diria que havia até
menos rugas.
— Chá de camomila de novo?
— De hortelã.
— Hortelã? Não acredito! O que deu em você, mulher?
— Não tinha de camomila no mercado e como você sempre quis de hortelã,
eu...
— Hoje será a melhor noite da minha vida. – interrompeu Ari sorrindo de
soslaio.
Rute pairou os olhos sobre a cabeça de Ari e procurou, sem sucesso, as longas
madeixas loiras no cabelo do velho. Passou a mão nos lábios. Exibiu um
semblante já tão esquecido que parecia novo. Olhou o velho como se fossem novos
conhecidos. Foi correspondida.
— Boa noite, velho chato.
— Boa noite, querida. E deu-lhe um beijo na boca, como se soubesse o que
se passava na cabeça de Rute e mesmo assim estivesse feliz.
Rute olhou para o frasco repleto daquela inutilidade em pó de sabor
limão, meneou a cabeça de forma quase imperceptível, sorriu um riso interno e
guardou o remédio, agora ainda mais inútil, com regozijo, na mesa de cabeceira.
Começou a folhear seu livro.
Pela manhã, através da janela da cozinha, Rute observou na lixeira a
ponta da folha de papel que dançava ao ritmo do vento. O jornal ainda estava na
página que Rute deixara. Sentiu falta de sua caneca de café amargo para
equilibrar com o doce de sua vitória requentada. Sob as letras negras, jazia um
peso ainda maior que ontem, como se a velha pedra tivesse abandonado o corpo de
Rute para se fixar naquele texto: “É com grande pesar que comunicamos o
falecimento de Leila Coutinho de Faria. O velório será na capela...”
Rute caminhou como o ponteiro de um relógio antigo na direção da
bancada. Café amargo. Preparou um misto-quente, deu a casca superior para
Susie, cortou o sanduíche em diagonal e começou a comer.
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